Sunday, October 2, 2016

Eu e os Políticos, de A. J. Saraiva

Capítulos-modelo, episódio 1, Eu e os Políticos, de A. J. Saraiva

Faz falta no mercado livreiro aquilo que já há muito existe no mercado imobiliário. Antes de visitarmos um apartamento, temos frequentemente oportunidade de ver um andar-modelo. Não tem sido assim com os livros, e já era tempo de alguém se mexer. Lanço-me agora na aventura de publicar capítulos-modelo de livros recém-publicados. Se não tem tempo para ler vários capítulos dum livro para ficar a saber se o há-de comprar ou não, os capítulos-modelo são ferramentas valiosas.

Aqui segue, assim, o capítulo-modelo de Eu e os Políticos, de António José Saraiva, criado quase exclusivamente com frases dos primeiros capítulos do livro. Depois de ler isto, só o compra quem quiser mesmo muito. Por exemplo, por ser da família de Saraiva.

Em 1998, o Expresso, de que eu viria a ser director durante 23 anos, publicou uma grande fotografia minha. [Figura pública à escolha] elogiou-a, dizendo: «Esta fotografia dava um óptimo cartaz de campanha eleitoral.»
Francisco Pinto Balsemão, na manhã desse sábado, bebeu um sumo de laranja ao pequeno-almoço e depois foi jogar golfe.
Uns meses antes, o Expresso tinha publicado uma manchete com o título «PJ investiga pedofilia no Governo da Madeira». Na sexta-feira anterior à publicação desta notícia, soubera-se desta «bomba» fora do jornal. Na semana anterior a esta fuga de informação, alguém teria funcionado como «espião» mas nunca se veio a saber quem foi. Na manhã do sábado anterior a essa semana de actividade de espionagem, Balsemão tinha ido jogar golfe. Perante isto, a partir de certa altura (e portanto já não perante isto), condicionei o acesso dos jornalistas à visualização da 1.ª página, e aí as fugas praticamente desapareceram. Juntamente com os sacos de plástico, que foram invenção minha, esta foi uma das ideias mais eficazes que alguma vez foram criadas no jornalismo internacional, conforme me foi dito pelo meu pai, o escritor e ensaísta António José Saraiva.
Um tempo indefinido depois de um dos eventos que mencionei, teve lugar a tal publicação da minha fotografia, e também uma exposição em torno do tema. [Figura pública à escolha], que me telefonava todo os anos pelo Natal e me convidou para almoçar no dia a seguir à exposição, queria-me falar de [Figura pública à escolha] mas estava apreensivo porque surgira uma suspeita qualquer relativamente à sua saúde e tinha de fazer uns exames médicos. Mas devorava a comida com tal rapidez, que eu o tranquilizei: «Se estivesse doente, não tinha esse apetite…» Mas ele não desarmou e respondeu, como só ele era capaz: «Com a saúde não se brinca!»
E a verdade é que esta conversa não teria qualquer sequência. Nem esta nem a anterior.
Por outro lado, [Figura pública entretanto morta] começou a cegar. Nessa altura, ou pouco depois, escrevi um dos poucos textos de que me arrependi: disse que a sua cegueira física parecia ser o espelho da sua cegueira ideológica. Era verdade, mas não o deveria ter escrito. Mas escrevi, e estou a escrever outra vez. E já agora acrescento: só o escrevi por saber que ele não poderia ler o texto. Se alguém lho lesse, seria essa pessoa a responsável por dar-lhe a conhecer a minha observação cruel… E, hoje em dia, posso escrever sobre um cego falecido porque, na sua qualidade de falecido, além de cego está surdo. Se alguém lho ler agora, já ninguém é responsável.
Uma tia minha, Natália da Costa Cabral, perguntou-me há pouco como era possível eu continuar a escrever tão mal, depois de tudo o que podia ter aprendido na profissão. E eu respondi-lhe simplesmente: «Achas que eu estou em idade de mudar de opinião?» A minha tia entendeu isto como uma confissão de que eu já não acredito em mim próprio. Eu não entendo assim. A frase é, pelo menos, ambígua.